1 de jul. de 2009

Baudelaire e a modernidade



Bloco 2

Na interioridade humana não existe apenas o belo e os nobres sentimentos; a modernidade por diversas vezes encontra meios escusos de se sobrepor nas relações humanas. Desejos e interesses nem sempre são sublimes, mas sabemos que o ser humano não é invadido apenas por bons sentimentos durante a vida, e isto é real.
Nas produções deste bloco todos os textos abordam o tema da modernidade em diversos aspectos. Ganância, ostentação, feiúra e temas corriqueiros ganham evidência e passam a ser material de reflexão; o cotidiano é posto no papel em seus aspectos positivos e negativos, como vemos também nas produções inspiradas em Baudelaire, poeta que exprimiu com beleza sentimentos e realidades não tão belas.
Cabe às letras toda expressividade humana, dos mais altivos sentimentos aos mais torpes, porque afinal é deste misto que é composta a vida, um pêndulo que oscila ora para o bem e ora para o mal. A representação do que nem sempre é belo, mas sem dúvida é verdadeiro, expurga fantasmas, ilumina idéias e assume na feiúra ou na solidão a inconstância do homem.
Para ilustrar este bloco composto por prosa e poesia sobre o tema da modernidade, que tem como um de seus expoentes principais Baudelaire, citamos Alfonso Bernadinelli em Da poesia à prosa: “em termos gerais, o pressuposto da assim chamada lírica moderna posterior a Baudelaire é a desagregação da noção de indivíduo e a indeterminação da categoria de experiência. A linguagem lírica perde seu antropomorfismo”.



Êxtase do poeta

Que pensamentos passam,
Numa cabeça brilhante
Do homem que tanto sabe...
Poeta maravilhoso!
Que escreveu lindos poemas
E brincou com palavras errantes.
Agora sentado a pensar
Sorriso cínico a espreitar
Aquilo que não pode escrever...
As mãos em leve descanso
Demonstram a fragilidade
Do pensamento do autor.
Que num colorido mágico
Transforma palavras amargas
Em poemas novinhos
Em troca dos criticados,
Proibidos e suprimidos

Sueli R. S. Simão



UMA BRINCADEIRA SÓRDIDA

Para Tavares, a vida se resumia em apenas uma coisa: dinheiro. Era obcecado por ganhar e desfrutar de todos os prazeres que o dinheiro podia lhe proporcionar. Para os poucos amigos que o ouviam, sempre dizia à queima roupa:
- Um homem sem dinheiro não é um homem.
Nem sempre havia pessoas dispostas a ouvi-lo ou mesmo ser amigo de Tavares, pois o mesmo manipulava as pessoas sem nenhum escrúpulo na sua ganância por dinheiro. E havia um grupo de pessoas que suspeitavam da morte de um cidadão que devia uma determinada quantia para Tavares. Somente algumas pessoas eram obrigadas a ouvi-lo e aturá- lo: sua própria família.

Edson ou Nair



Rotina

Tavares era viúvo. As pessoas costumavam fazer brincadeiras maledicentes dizendo: “nem a mulher agüentou.” Ele se casara quando a sua empresa estava no auge e numa de suas aventuras, engravidara aquela que seria sua futura esposa e lhe daria uma única filha: Cecília. Depois da morte da esposa, passara a viver na casa dos pais com a menina e vivia taciturno, mal-humorado e tratando a todos com gritos, ordens e desprezo. Sua família era uma típica família humilde e ele ainda não caíra na realidade de que estava falido e com muitos credores a pagar. Sempre pensava em si como um rei e mandava todos da família pagar suas contas nos mais diferentes locais e em várias situações vexaminosas. Enquanto ele ia viajar, passear e uma vez ou outra, arrumar um emprego para conseguir pagar os credores e a escola da filha.
Cecília tinha vergonha do pai. Além de não conseguir uma única conversa, também era tratada como uma serviçal baixa e sem nenhuma importância. Nos eventos escolares passava pelo vexame constrangedor de ir sozinha, ou acompanhada de suas tias, que para um esclarecimento da história, foram as substitutas maternas de criação e educação. Na festa de formatura, uma amiga a interroga a respeito de seus pais. Cecília responde sem pestanejar: “eu sou órfã.”
Como todo orgulhoso derrotado, Tavares tinha uma fuga: a bebida. Cada vez que pensava nos credores e na situação que se encontrava, mergulhava no álcool e voltava para casa completamente embriagado e furioso. Ligava a televisão e dormia no sofá mesmo... Porque não conseguia subir as escadas...

Surpresa

A família e algumas pessoas do bairro ficaram boquiabertas quando Tavares, depois de uma viagem de longa ausência, surgiu com uma nova aparência, roupas e uma senhora grã fina como namorada. Tavares apresentou a senhora (e também viúva) Zilda para a família como sua nova namorada e, depois de um almoço com sorrisos e cervejas, Tavares foi levar a Senhora Zilda em sua residência.
Zilda era uma senhora de origem italiana, que ao chegar ao Brasil quando pequena. Trabalhou muito e junto com seu namorado e futuro marido, iriam fazer fortuna na empresa que fundaram: Titcholes. A mais famosa empresa no ramo da moda com uma equipe super preparada e conceituada. E assim, com muito dinheiro, nome e prestígio na sociedade, Zilda e seu marido permaneceram juntos durante 25 anos de casados... Até que a morte chegou e a deixou viúva. Zilda continuava a frente de sua empresa e mantinha os negócios prosperando. Mas, era depressiva e saia apenas à noite para beber. E foi numa dessas noites que encontrou Tavares. Depois de alguns drinks, eles já estavam rindo e trocaram endereço, telefone e deram início ao namoro.
Aquilo era demais. Para os vizinhos, conhecidos e poucos amigos, aquilo era golpe. Para a família, era mais uma situação do Sr. Tavares e para Cecília, uma ofensa à memória da mãe. Agarrada ao retrato da mesma chorou em sua cama.
Com o passar do tempo, Tavares não era mais visto em casa e sim nas revistas, jornais e TV ao lado de Jaqueline. Quando interrogado sobre a estranha relação, aos sorrisos dizia: “amor não tem idade”. E se aparecia em casa, era apenas para deixar algum dinheiro para a família pagar suas dívidas no banco ou em outros lugares onde havia credores. Para Tavares, não havia mais família e sim um bando de empregados ao seu dispor que ele nem sequer os ouvia. Apenas deixava ordens e ia embora, dirigindo o carro novo para a residência da casa viúva, onde lá vivia.
Tavares era pura alegria. Agora sim ele tinha a vida que tanto desejava. Era amado pela viúva que tudo fazia por ele, viajava, tinha empregados, era destaque na alta sociedade e principalmente, muito, mas muito dinheiro...

Milagres

Cerca de quatro meses depois nascia o filho do casal e a imprensa não falava outra coisa. Depois de um ano e meio, novamente a imprensa falava do casal. Agora com um pouco mais de destaque para o estado de saúde de Zilda, que amargava em cima de uma cama sofrendo de câncer. Solicitado pela imprensa sobre a dar algumas declarações para os meios de comunicação, Tavares gritava gesticulando feito louco :
- Milagres existem! Milagres existem!
Mas o que apareceu foi o óbvio : depois de quinze dias de agonia, a moribunda suspirou e foi dessa para melhor. No velório, amigos, parentes, funcionários, imprensa local e alguns curiosos. Tavares chorava feito uma criança abandonada despertando a curiosidade das pessoas e comentários como : “ de fato, ele realmente a amava. “
O que ninguém podia imaginar é que as lágrimas eram de pura alegria, pois, agora Tavares era o herdeiro das Ticholes. Pois assim estava registrado no testamento dentro do bolso de seu paletó.
De fato, milagres existem...

Edson



Pombas!

Ah! Uma coisa eu posso afirmar, se eu fosse elas tomaria mais cuidado comigo. Não sabem dos riscos que correm me desafiando tanto assim. Sempre é a mesma coisa. Será que não passa por suas cabecinhas que qualquer hora eu posso tomar uma atitude que pode ser mortal? Tenho estado com os nervos à flor da pele. E eu não sou assim. Sou do tipo de pessoa que acorda cantando. E agora pareço uma louca, principalmente quando estas criaturas invadem o meu terraço a procura de comida, deixando aquela coisa verde e mole no chão e em cima do carro. Se ao menos fossem comportadas... Se ao menos não tivessem o estigma de nos transmitir doenças. O fato e que não consigo conviver com a desorganização dos outros. Se fossem somente pombas a me tirar do sério, acho que não estaria tão irritada assim. Meus filhos, meus adorados filhos, vivem a fazer bagunça. Arrumo, ajeito quase todos os dias a nossa casa e lá vão eles a desarrumar tudo, não se preocupando nem um pouquinho em me agradar ajudando nas pequenas coisas. É isso que me chateia. Afinal, não temos empregada diariamente. Não sei como pessoas que nos amam se comportam assim. Vivem me chamando de neurótica. Por limpeza. Não é verdade, eu só quero que nosso lar seja mais organizado. Só quero um pouco de ajuda. È pena não podermos morar juntos em harmonia.

Solange Rossignoli



2010

-Mãe?
-Filha? Tudo bem?
-Você vai ser vovó!
-Vovó? Você tem certeza? Fez o teste?
-Mãe, você vai ser vovó. Você está feliz?
-Mas... você tem certeza? Foi ao médico?
-Mãe. Você vai ser vovó! Nasce em abril.
-Filha, você fez o exame de sangue ou urina? O laboratório é confiável? Você tem certeza?
-Mãe você vai ser vovó.
-Parabéns filha... amanhã a gente conversa.

Vovó? Por um instante pensei:

Como será ter um neto? Um neto nos dias de hoje, em que a palavra para definir o nosso tempo é mudança. Outro dia mesmo, Amélia é que era mulher de verdade. Agora, deixou de ser. Temos mulheres melancia, morango e uma lista de frutas ao gosto do freguês. Tubaína, deixou de ser o refrigerante do domingo “não esqueça o casco se não o seu Manuel não vende”. Agora as garrafas pets passaram a fazer parte da paisagem urbana. Os casais não sonham mais com a lua de mel, fazem teste drive, depois casam. Casamento deixou de ser cerimônia e passou a ser evento, com atenção especial aos detalhes, tudo combina com tudo e salve a criatividade dos produtos comerciais oferecidos pelo mercado! Nossas crianças não engolem mais bolinhas de gude, isso pe coisa do passado. Engolem baterias e imãs dos brinquedos de última geração. Endereços deixaram de estar associados a datas comemorativas e nomes de personagens da História, passaram a ser virtuais: Azevedo@hmeu email.com. entre outros... Feriado era lembrado pelo seu feito. Hoje é sinônimo fr de emenda, cerveja, congestionamento... o que aconteceu em 7 de setembro? Você se lembra? Cachorro era vira-lata, comia comida de gente. Cachorro de madame era pequinês, alias, onde eles andam? Não havia PET SHOP e suas variedades: ração para cães jovens, para idosos com dentes, ou sem dentes, pêlos longos ou pêlos curtos e outras variedades. Emprego? Preenchiam-se fichas nas Agencias, horas na vila de espera. Hoje mande seu currículo para
maodeobra@emprego.com e aguarde resposta nos eu email. Problemas eram resolvidos na hora do janta. Hoje, você pode terceirizar: problemas com os filhos: SUPER NANE, com o seu cão: Dr PET, com o orçamento familiar: Dr. Dinheiro, problemas diversos: LIGA DAS MULHERES. As vovós faziam tricô, quitutes e cochilavam no sofá. Hoje freqüentam Academia, tem email e namoram...
Seja bem vindo meu neto! Apesar das mudanças, algumas coisa não mudam... amor de avós, continuam sendo assim... foi comigo... com sua mamãe... e será com você....
Aguardo sua chegada em 2010, neste mundo globalizado, digitalizado, com babá eletrônica e BLOG...

Roseli Manerich



DXV 4816

para o motorista
Vectra preto
óculos raibaw
e a patricinha
ao lado de
luzes – loira

perfeito comercial
do sucesso social

:classe média
dinheiro para
viagens regulares
velocidade
- além do permitido
- ultrapassagens proibidas

remetente: SCS.

Ps.: destino – Guarujá
ou seria, praia grande?

Liliane C. Pinatti



Baudelaire / Elogio Lúgubre

Mundo alheio de olhos dispersos,
o peso reflexivo na escuridão de si,
delicadeza do toque das mãos tediosas,
ausentes de qualquer consolo ou chão
no horizonte, outono em cores neutras


despojos graves
de um ancião distante
sustentam vestes
fúnebres

olhar vazio
dentro de máscara
[pétrea

:o gelar de dentro em branco e preto:


mãos, expressão e céu brancos,
a catedral escura veste a figura,
o profundo olhar alcança o nada.

em frio mármore
na penumbra pousado,
contrapõe um vazio
[esquivo

a adornar
uma ausência.



Papéis Avulso 2

Prenúncio de viagem

A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro.
_Não esqueci de nada?, perguntava pela terceira vez a mãe.
_Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência ainda. E olhava para a frente, o coração apressado. Viajar! Finalmente a viagem chegara. Foi muito tempo desejando e planejando. Sentia-se livre, com poder sobre a vida, poder para decidir seu destino, poder para decidir para onde ir e ir! Parecia que a vida estivera escolhendo por ela há muito mas agora, agora era a sua vez de decidir. E era chegado o dia.
Não podia negar que havia um ponto negro. Seria melhor se pudesse ir sozinha mas não podia deixar a mãe. Era um fato: lutara contra o desejo de deixá-la mas considerou que seria muito cruel naquela circunstância. Então tinha que ser assim. Era o preço a pagar. E esse incômodo não passava de um pontinho escuro em meio a tantas outras sensações e sentimentos que a preenchiam. Mas, às vezes esse ponto negro, de mero ponto, parecia crescer. Parecia veneno, como se uma pequena dose fosse capaz de estragar tudo. Como uma boca negra e pequenininha que de repente se escancarava e era capaz de sorver toda sua liberdade. Como se ela fosse de mentira. Como se tudo o que conquistou fosse de mentira.
_Não esqueci de nada, filha? _ a mãe perguntava de novo. E seu ouvido nem ouvia direito a resposta da filha. Os olhos procuravam as malas. Não podiam ser esquecidas. Não podiam ser deixadas para trás. Lembrava-se desse sentimento.Parecia ter o mesmo medo que tinha na infância, como quando saíam para passear de ônibus e não sentava no mesmo banco que a mãe: tinha medo que ela se levantasse e esquecendo-se dela a abandonasse ali sozinha. Porisso não deixava de olhá-la, de segurá-la com os olhos...
As malas, ali: estava mesmo indo! Não iria mesmo ficar.
_Filha...
_Sim, mãe.
_Será que não esqueci de nada?

Parecia a batida insistente de um martelo repetindo, repetindo, irritante. E a batida incidia no ponto negro que parecia querer abrir sua bocarra de novo. Como se o ponto se alimentasse da raiva crescente que ía sentindo. Porque a mãe não parava de falar? Já não estava indo junto? Precisava ficar falando? E aquela insistência com as malas!
Sim, mãe, não esquecemos nada, e se esquecemos a gente compra lá. _E a filha olhou a mãe, já sem humor.
Foi nesse instante que aconteceu: quando deu com aquele olhar no rosto da mãe. O que ainda ía ser dito ficou em suspensão. A respiração parou ao meio e sobrou o susto. O susto daquele medo que ficou no meio do medo de tudo.
Como se o medo de uma e o medo da outra se encontrassem e se entendessem. Ambos pertenciam à mesma sorte de abismo, tinham a mesma qualidade de terror. Como se uma liberdade significasse um abandono, a liberdade de uma implicando necessariamente o abandono da outra e assim para o resto da vida. Alguém sempre estava em risco e as duas se entrelaçavam assim, sem poder seguir adiante, sem poder soltar e sem poder reter.
Naquele instante o reconhecimento: às vezes, quando se reconhece, algo pode mudar. O olhar preso no olhar da mãe, uma dor, uma dor que reverberava e parecia ecoar por todos os cantos do abismo que as ligava, imenso, no interior do táxi.
Medos antigos e o desejo de agarrar-se a alguma margem que desse segurança, pareceram romper os diques e se encontraram ali, naquele tempo-espaço de reconhecimento.
As duas souberam então de que moléculas era composta a massa de suas vidas. O desejo de liberdade de uma se encontrava no desejo da outra. O medo de uma se tocava no medo da outra, e tudo se complementava pelo inverso. E a massa que as compunha parecia girar como um caleidoscópio e era vertigem, e era um giro, e era menos que um segundo, tempo curto para o entendimento. Tempo suficiente do ponto negro se agigantar quase ao infinito, quase fazendo explodir as duas, para ser sorvido para dentro de si mesmo, numa implosão. E foi menos que um segundo, tempo esse exato para o entendimento: num momento inaugural, novos sentidos podiam ser vislumbrados, desconstruções e novas construções podiam ser geradas, as moléculas se ligando de um novo jeito.
E ela fechou os olhos um instante, querendo reter a coisa nova que se fazia. Abriu-os então e viu os olhos arregalados da mãe e soube:
_ O que houve,filha?
_Difícil dizer, mãe. Parece que está tudo bem agora.
_Entendo...
E ela soube que a mãe realmente entendia. Soube que a mãe sabia também.
As duas mulheres, mãe e filha, deram-se as mãos e recostaram no banco, a caminho do aeroporto. A viagem havia começado.

Márcia Torcatto